quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sobre o Espetáculo "Em Um Lugar de la Mancha" e seu Processo de Montagem

O espetáculo Em Um Lugar de la Mancha é uma livre adaptação do Grupo Peripatéticos de um dos maiores clássicos da literatura mundial, a novela O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra.
A obra Dom Quixote (como é popularmente chamada) foi escolhida como empreendimento inaugural do grupo, por acreditar que retratasse bem o trabalho proposto, envolvendo teatro, música e literatura, e dessa forma começou a pesquisa cênico-literário-musical para o processo da montagem.
Textos dramáticos sobre o Quixote são quase inexistentes e dessa forma, o primeiro passo foi realizar a transcriação da obra literária para a dramaturgia. Para isso, todo o elenco foi intimado a ler a obra na íntegra (nada de resumos) e fazer anotações das impressões e selecionar passagens interessantes do livro. No decorrer das leituras fomos complementando o material com vídeos que acrescentassem informações para a pesquisa, dentre eles os filmes A Viagem do Capitão Tornado, O Incrível Exército de Brancaleone e Big Fish. O universo de Dom Quixote também foi muito retratado em pinturas de artistas famosos como Salvador Dalí e Pablo Picasso; por isso resolvemos estudar algumas e a partir delas, colher material para a produção dramatúrgica. As imagens mais utilizadas neste processo, foram as do desenhista Gustave Doré, provavelmente as mais conhecidas e que puderam fazer com que os leitores de todo o mundo, tivessem uma visão mais comum de nosso engenhoso fidalgo.
Com todo este apanhado, fomos para a sala de ensaios e através de improvisações em cima deste material escrevemos a dramaturgia e criamos as músicas, com suas respectivas letras, que estão presentes no espetáculo. Vale ressaltar, que a adaptação é apenas a visão do Peripatéticos sobre a obra de Cervantes, já que retratar-la cenicamente, com toda a representividade que ela exerce no mundo literário, seria impossível, infundado e muito pretencioso com a genialidade do escritor. Em nosso texto dramático estão embutidos todos os elementos, passagens e filosofias que achamos mais importantes de transmitir ao público - o real motivo de toda essa empreitada.
Trabalhar o popular sem perder o eruditismo da obra, também foi um desafio, que acredito termos vencido. Para isso houve um estudo da cultura espanhola, para que assim pudéssemos mesclar com a cultura popular brasileira (também muito rica). Touradas, leques, castanholas (instrumentos presentes na música flamenca) e até mesmo as cores da bandeira espanhola, foram motes para a criação do espetáculo, porém a montagem era mais do que estas duas culturas; o Dom Quixote por si só está cheios de signos, além de sua personalidade erudita, porém desleixada, assim como o glutão Sancho Pança e, analisando este aspecto, conseguimos construir toda sua armadura e objetos de cavalaria usando utensílios domésticos (fôrmas de bolo, conchas, tampas de panelas, cabos de vassoura, escorredores de macarrão e raladores de queijo) fazendo alusão ao seu suposto nome - "já que nisso diferem os vários autores que dele escreveram" - "Queixada ou Queijada" e ao nome escolhido por nosso fidalgo, Quixote, que se refere ao objeto coxote, usado para protejer as coxas, que por sua vez, faz referência a expressão "feito nas coxas" (que é feito de qualquer maneira). Sobre isso escreveu o escritor Mikhail Bakhtin, em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: "O grande ventre de Sancho Pança, seu apetite e sua sede são ainda fundamental e profundamente carnavalescos; sua inclinação para a abundância e a plenitude não tem ainda caráter egoísta e pessoal, é uma propensão para a abundância em geral. (...) O materialismo de Sancho, seu ventre, seu apetite, suas abundantes necessidades naturais constituem o "inferior absoluto" do realismo grotesco, o alegre túmulo corporal (a barriga, o ventre e a terra) aberto para colher o idealismo de Dom Quixote, um idealismo isolado, abstrato e insensível; ali o "cavaleiro da triste figura" parece dever morrer para renascer de novo, melhor e maior (...) O papel de Sancho em relação a D. Quixote poder ser comparado ao das paródias medievais diante das ideias e cultos sublimes; ao papel do bufão frente ao cerimonial sério; ao da Charnage em relação à Quaresma, etc. (...) É um típico carnaval grotesco, que converte o combate em cozinha e banquete, as armas e armaduras em utensílios de cozinha e vasilhas de barbear, e o sangue em vinho (episódio do combate com os odres de vinho), etc."
Com tudo analisado e finalizado, o que nos sobra é um espetáculo - se não tão fiel e fantástico como a obra - sincero, trabalhado, divertido e totalmente independente.
Aventuras não nos faltarão e contamos que nelas estejam todos vocês, leitores/espectadores do maravilhoso mundo do cavaleiro da triste figura.
Espero encontar a todos Em Um Lugar de la Mancha.

Samir Antunes

Abaixo algumas imagens de Gustave Doré para a obra de Cervantes junto a referências dentro do espetáculo Em Um Lugar de la Mancha.

Um comentário:

  1. UAU! O texto ficou maravilhoso! E parabéns pelas montagens, muito interessantes! Abraços!

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